Gênesis 2:24


Portanto deixará o homem o seu pai e a sua mãe, e apegar-se-á à sua mulher, e serão ambos uma carne. 

1. Introdução

Gênesis 2:24 é um versículo-chave na teologia bíblica do casamento. Ele aparece como uma espécie de comentário editorial dentro da narrativa da criação, estabelecendo um princípio universal a partir do encontro entre Adão e Eva. Após o reconhecimento poético de Adão em Gênesis 2:23, este versículo introduz a primeira definição bíblica de casamento: deixar, apegar-se e tornar-se uma só carne.

Essa passagem não é apenas descritiva — ela é normativa. Ela estabelece um padrão que será reafirmado por Jesus em Mateus 19:5 e por Paulo em Efésios 5:31, mostrando que o casamento é mais do que uma convenção social: é uma instituição divina, com raízes na criação.

O versículo apresenta três movimentos fundamentais:

  1. Deixar pai e mãe — uma ruptura com a estrutura anterior de dependência.

  2. Apegar-se à esposa — uma nova aliança de compromisso e fidelidade.

  3. Tornar-se uma só carne — uma união profunda, física, emocional e espiritual.

Essa tríade revela que o casamento, segundo o plano de Deus, é uma união exclusiva, duradoura e transformadora. Não é apenas uma parceria funcional, mas uma fusão de vidas que reflete a própria imagem de Deus em comunhão.

2. Contexto Histórico e Cultural

Gênesis 2:24 foi escrito em um contexto patriarcal, no qual a estrutura familiar era a base da sociedade. Na cultura do Antigo Oriente Próximo, esperava-se que os filhos — especialmente os homens — permanecessem dentro da casa dos pais, estendendo a linhagem e obedecendo à autoridade familiar. Por isso, a afirmação de que “o homem deixará seu pai e sua mãe” é surpreendente: ela rompe com o padrão cultural esperado e estabelece um novo tipo de vínculo prioritário — o do casamento.

Esse “deixar” não implicava abandono, mas sim reorganização de lealdade e identidade. O casamento, então, não era uma simples junção social ou econômica, mas uma mudança de status existencial. O homem e a mulher formariam uma nova unidade, fundamentada em aliança.

O conceito de “apegar-se” (hebraico dabaq) traz a ideia de adesão firme, de vínculo inseparável. A mesma palavra é usada para descrever como o povo deveria se apegar a Deus (Deuteronômio 10:20), revelando que o casamento seria um tipo de relação sagrada, de compromisso espiritual e emocional, não apenas físico.

Por fim, a expressão “uma só carne” era profundamente simbólica no pensamento hebraico antigo. Ela não se referia apenas à união sexual, mas a uma fusão de identidades — corpo, alma e propósito — em uma nova entidade relacional. Essa concepção contrastava com outras culturas antigas, onde a mulher era vista como posse ou extensão do homem. Aqui, homem e mulher se tornam algo novo juntos.

Esse versículo, portanto, não nasce de uma cultura que valorizava independência individual, mas o apresenta como ideal divino: a constituição de uma nova família, baseada em entrega mútua, compromisso duradouro e identidade compartilhada.

3. Análise Teológica do Versículo

“Por isso”

Essa expressão estabelece um princípio fundamental definido por Deus na criação. Ela conecta-se diretamente ao versículo anterior, onde a mulher é formada a partir do homem, revelando a origem da união conjugal. Esse “por isso” marca um padrão eterno: o matrimônio é parte do projeto divino desde o princípio, e não uma construção cultural posterior.

“deixará o homem o seu pai e a sua mãe”

Num contexto em que famílias estendidas viviam sob o mesmo teto e o vínculo com os pais era a estrutura social central, esse “deixar” tem implicações profundas. Não se trata apenas de separação física, mas de redefinição de lealdade e prioridade. O casamento inaugura uma nova unidade relacional que se torna primária, acima da lealdade familiar anterior.

“e apegar-se-á à sua mulher”

O termo hebraico para “apegar-se” (dabaq) implica ligação firme, duradoura e íntima. Não é um vínculo ocasional, mas uma aliança sólida e contínua. Essa união é reflexo do compromisso espiritual entre Deus e seu povo — uma ligação que envolve fidelidade, entrega e exclusividade. No Novo Testamento, essa união é comparada à relação entre Cristo e a Igreja (Efésios 5:31–32).

“e serão ambos uma só carne”

Essa expressão descreve a fusão do homem e da mulher em todos os aspectos: físico, emocional e espiritual. Vai além da dimensão sexual — é sobre compartilhamento de vida, identidade e missão. O conceito de “uma só carne” é fundamental para entender a exclusividade e permanência do casamento. Jesus reafirma essa verdade em Mateus 19:5–6, estabelecendo-a como ordenança divina atemporal.

 

4. Pessoas, Lugares e Eventos

Adão e Eva

O primeiro casal criado por Deus, cujo relacionamento serve de fundamento para o conceito de casamento como união divina.

Jardim do Éden

Cenário da criação e da aliança entre homem e mulher, simbolizando o ambiente ideal para relacionamentos íntegros.

Casamento

Instituição estabelecida por Deus como uma aliança entre um homem e uma mulher — refletida inicialmente em Adão e Eva.

 

5. Pontos de Ensino

O Projeto Divino para o Casamento

O casamento não é invenção humana, mas plano de Deus. Ele reflete a fidelidade e o amor da aliança divina.

Deixar e Unir-se

O “deixar” os pais indica a criação de um novo núcleo familiar, enquanto o “apegar-se” expressa o compromisso firme e a exclusividade do relacionamento conjugal.

Unidade e Comunhão Profunda

A “uma só carne” revela a profundidade da união no casamento, que integra corpo, alma e espírito numa nova realidade compartilhada.

Casamento como Reflexo de Cristo e da Igreja

Assim como Cristo se une à Igreja, o casamento é uma imagem viva dessa entrega e amor. Cônjuges são chamados a amar-se com essa mesma dedicação sacrificial.

Zelar pela Santidade do Casamento

Num tempo em que o matrimônio é relativizado, os cristãos são chamados a honrar essa aliança como santa, viva diante de Deus.

6. Aspectos Filosóficos

1. A liberdade que escolhe o vínculo

O “deixar pai e mãe” representa um ato de liberdade. Não é fuga, mas escolha. O ser humano, ao amadurecer, é chamado a sair da esfera da proteção para assumir responsabilidade. Filosoficamente, isso ecoa a ideia de que a liberdade não é ausência de vínculos, mas a capacidade de escolher vínculos significativos. O casamento, nesse sentido, é uma expressão de liberdade madura — um “sim” que implica renúncia e entrega.

2. A identidade construída na alteridade

Ao “apegar-se à sua mulher”, o homem não apenas se une a alguém — ele se transforma. A filosofia do personalismo, especialmente em pensadores como Martin Buber e Emmanuel Mounier, afirma que o “eu” só se realiza plenamente no encontro com o “tu”. O casamento, então, é um espaço onde o ser se revela e se molda na relação com o outro. A individualidade não é anulada, mas aprofundada na comunhão.

3. Unidade sem fusão, comunhão sem perda de si

“Serão ambos uma só carne” não significa dissolução da identidade, mas integração. A filosofia da alteridade nos ensina que a verdadeira união respeita a diferença. O casamento bíblico não é simbiose, mas aliança: dois que permanecem distintos, mas caminham como um. Isso desafia tanto o individualismo moderno quanto a ideia de fusão total — e propõe uma terceira via: a comunhão que preserva o mistério do outro.

4. O corpo como linguagem da aliança

A expressão “uma só carne” tem implicações corporais, mas também existenciais. O corpo, na tradição bíblica, é lugar de revelação e compromisso. A união sexual, nesse contexto, não é apenas prazer ou reprodução — é linguagem sacramental. Como diria Paul Ricoeur, o corpo fala. E no casamento, ele diz: “eu me dou a ti, por inteiro”. Essa entrega é símbolo de uma verdade mais profunda: o amor que se torna visível.

5. O casamento como metáfora do absoluto

A união entre homem e mulher, segundo Gênesis 2:24, é mais do que um arranjo humano — é imagem de algo maior. Por isso, Paulo a compara à relação entre Cristo e a Igreja (Ef 5:31–32). Filosoficamente, isso aponta para o casamento como ícone do transcendente: uma realidade visível que remete ao invisível. O amor conjugal, quando vivido com verdade, torna-se sinal do amor divino — fiel, fecundo e eterno.

7. Aplicações Práticas

1. Escolha vínculos intencionais, não circunstanciais

Deixar pai e mãe não é rejeitar, mas assumir uma nova identidade relacional. Em um tempo onde relacionamentos são fluídos e descartáveis, este versículo nos chama a formar alianças conscientes, baseadas em responsabilidade e propósito.

2. Reorganize suas prioridades ao formar um novo lar

O casamento exige realinhamento. A lealdade aos pais dá lugar à fidelidade ao cônjuge. Honrar pai e mãe continua, mas o vínculo conjugal se torna o eixo da nova família. Ignorar esse princípio compromete a intimidade e a autonomia do casal.

3. Cultive um apego que não seja possessivo, mas profundo

“Apegar-se” é mais do que morar junto — é comprometer-se com o bem do outro. Isso inclui escuta, reconciliação, suporte nos momentos frágeis e proteção da confiança. Casais saudáveis não vivem grudados, mas entrelaçados em propósito.

4. Pratique a unidade em todas as dimensões

Ser “uma só carne” não é apenas sobre sexualidade — é sobre unidade de alma, valores e caminho. Isso se pratica em decisões compartilhadas, em projetos comuns, e em orações conjuntas. O casal se torna um “nós” que honra o “tu” e o “eu”.

5. Honre o casamento como aliança, não contrato

Em um mundo que normaliza a substituição de vínculos, Gênesis 2:24 nos lembra que o casamento é aliança sagrada, selada diante de Deus. Isso nos motiva a investir, perdoar, crescer juntos e resistir às tentações do egoísmo.

8. Perguntas e Respostas Reflexivas

1. Como o conceito de “deixar e unir-se” desafia ou confirma sua compreensão sobre o casamento?

Esse conceito desafia a visão moderna de que o casamento é apenas uma formalidade ou extensão da vida anterior. “Deixar” pai e mãe exige maturidade e realocação de prioridades, enquanto “unir-se” indica compromisso profundo e contínuo. Confirma que o casamento não é um laço frágil, mas uma transição estrutural de identidade e lealdade — um novo começo, não apenas uma extensão do passado.

2. De que maneiras os casais podem hoje refletir a unidade e oneness descritas em Gênesis 2:24?

Por meio da construção de vida comum: decisões compartilhadas, oração em conjunto, perdão constante e alinhamento de propósito. Essa unidade exige diálogo contínuo, escuta ativa e respeito mútuo. Casais que aprendem a lidar com as diferenças sem perder o vínculo cultivam uma “uma só carne” que vai além do físico — é uma só alma em missão conjunta.

3. Como o ensino de Jesus em Mateus 19:4–6 reforça a permanência do casamento conforme descrito em Gênesis 2:24?

Jesus retoma Gênesis 2:24 para afirmar que o casamento não é algo humano que pode ser desfeito a qualquer momento, mas obra de Deus: “o que Deus ajuntou, não separe o homem”. Ele reafirma que essa união é sagrada e indissolúvel, e vai além da legislação mosaica — é um retorno à ordem criacional. Isso reforça que a aliança conjugal foi pensada para durar por toda a vida.

4. Quais passos práticos podemos tomar para honrar a santidade do casamento em nossa vida ou comunidade?

Orar pelos casamentos ao nosso redor, apoiar casais em dificuldades, valorizar o compromisso mais do que a conveniência, e ensinar — com a vida e com palavras — que o casamento é vocação, não opção. Na prática pessoal, isso significa fidelidade, paciência, reconciliação e intencionalidade no cultivo da relação.

5. Como compreender o casamento como reflexo da relação de Cristo com a Igreja impacta sua visão sobre papéis e responsabilidades no lar?

Essa compreensão eleva o casamento a um nível espiritual: marido e esposa não vivem apenas um pacto humano, mas testemunham uma realidade eterna. Isso transforma os papéis conjugais em serviço mútuo: o marido ama com entrega sacrificial (como Cristo) e a esposa responde com honra e cooperação (como a Igreja), mas ambos se moldam à imagem de Jesus, servindo e edificando um ao outro. O foco deixa de ser poder e passa a ser amor que se doa.

9. Conexão com Outros Textos

Mateus 19:4–6

“Não tendes lido que, no princípio, o Criador os fez homem e mulher, e disse: Portanto deixará o homem pai e mãe, e unir-se-á à sua mulher, e serão dois numa só carne? Assim não são mais dois, mas uma só carne. Portanto, o que Deus ajuntou não o separe o homem.”

Jesus cita diretamente Gênesis 2:24 ao responder sobre o divórcio, reafirmando que o casamento é uma união ordenada por Deus, inviolável e permanente. Ele não trata o texto como simbólico ou culturalmente condicionado, mas como norma eterna. Isso exalta a santidade da aliança conjugal e a responsabilidade de preservá-la diante dos ventos da cultura.

Efésios 5:31–32

“Por isso deixará o homem seu pai e sua mãe, e se unirá à sua mulher, e os dois serão uma só carne. Grande é este mistério; digo, porém, a respeito de Cristo e da igreja.”

Paulo eleva o casamento a uma dimensão sacramental, comparando-o à relação entre Cristo e a Igreja. A união conjugal torna-se reflexo do amor redentor de Cristo — amor que se doa, que purifica, que edifica. Aqui, Gênesis 2:24 ganha profundidade cristológica: o casamento não é apenas sobre dois humanos, mas sobre revelar o amor divino por meio da aliança.

1 Coríntios 6:16

“Ou não sabeis que o que se une à prostituta forma um só corpo com ela? Porque, como está escrito: Serão dois uma só carne.”

Paulo usa a citação de Gênesis 2:24 para advertir sobre a seriedade da união sexual. Ele mostra que o ato sexual cria uma ligação real e significativa — não apenas física, mas também espiritual. A consequência prática é clara: devemos honrar o corpo como templo do Espírito e não banalizar a intimidade que foi desenhada para refletir aliança e santidade.

10. Original Hebraico e Análise Palavra por Palavra

Versículo em Português (ACF): “Portanto deixará o homem o seu pai e a sua mãe, e apegar-se-á à sua mulher, e serão ambos uma carne.” (Gênesis 2:24)

Texto Hebraico: עַל־כֵּן יַֽעֲזָב־אִישׁ אֶת־אָבִיו וְאֶת־אִמּוֹ וְדָבַק בְּאִשְׁתּוֹ וְהָיוּ לְבָשָׂר אֶחָד׃

Transliteração: Al-kên ya‘ăzāḇ ’îš ’eṯ-’āḇîw wə’eṯ-’immōw wəḏāḇaq bə’ištōw wəhāyû ləḇāśār ’eḥāḏ.

 

Análise Palavra por Palavra:

  • עַל־כֵּן (al-kên) – “Portanto”: expressão conclusiva que conecta o versículo anterior (o reconhecimento de Adão) com a instituição do casamento. Indica causa e consequência.

  • יַֽעֲזָב (ya‘ăzāḇ) – “deixará”: verbo no imperfeito, indicando ação contínua ou habitual. Implica uma decisão ativa de reorganizar prioridades.

  • אִישׁ (’îš) – “homem”: termo genérico para o ser humano masculino, mas também usado para “marido” em contextos conjugais.

  • אֶת־אָבִיו (’eṯ-’āḇîw) – “seu pai”: o objeto direto da ação de deixar. O sufixo indica posse (“seu”).

  • וְאֶת־אִמּוֹ (wə’eṯ-’immōw) – “e sua mãe”: reforça que tanto o pai quanto a mãe são deixados em termos de prioridade relacional.

  • וְדָבַק (wəḏāḇaq) – “e apegar-se-á”: verbo que significa colar, unir-se firmemente. Usado também para descrever a adesão espiritual a Deus (Deuteronômio 10:20). Implica compromisso duradouro.

  • בְּאִשְׁתּוֹ (bə’ištōw) – “à sua mulher”: literalmente “em sua esposa”. O prefixo בְּ (be) indica proximidade, intimidade, união.

  • וְהָיוּ (wəhāyû) – “e serão”: verbo no plural, indicando transformação de estado — de dois indivíduos para uma nova unidade.

  • לְבָשָׂר (ləḇāśār) – “em carne”: “carne” no hebraico (bāśār) representa o corpo, mas também a totalidade do ser humano. Aqui, é símbolo de unidade existencial.

  • אֶחָד (’eḥāḏ) – “uma”: numeral que também carrega o sentido de unidade composta. É o mesmo termo usado em Deuteronômio 6:4 (“Ouve, ó Israel: o Senhor nosso Deus é o único Senhor”).

11. Conclusão

Gênesis 2:24 é mais que uma sentença sobre relacionamentos — é um marco da identidade relacional do ser humano. Ele estabelece, desde o princípio, que o casamento não é uma convenção cultural ou legal, mas uma vocação sagrada inscrita na própria criação.

Ao declarar que o homem deixa pai e mãe, Deus redefine a ordem de vínculos: o casamento inaugura uma nova família, autônoma e prioritária. O “apegar-se” à esposa revela que essa união é de compromisso íntimo, contínuo e inviolável — não uma associação temporária, mas uma aliança viva e duradoura.

A expressão “uma só carne” sela esse mistério: duas vidas, dois corpos, dois mundos se tornam uma unidade profunda e indivisível. Essa fusão não anula a individualidade, mas a aperfeiçoa na comunhão. É um eco do próprio Deus trino: diversidade em unidade.

Jesus reafirma esse versículo com autoridade divina, e Paulo o eleva ao mistério do Evangelho. O casamento, então, torna-se ícone do amor de Cristo pela Igreja: amor que se entrega, que perdoa, que permanece.

Gênesis 2:24 é a origem de toda verdadeira aliança humana. Uma palavra que molda lares, sustenta promessas e aponta para uma comunhão maior — aquela em que Deus mesmo será tudo em todos.

 
 

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