Mateus 5:21


Ouvistes que foi dito aos antigos: Não matarás; mas qualquer que matar será réu de juízo. 

1. Introdução

Este versículo marca o início de uma série revolucionária de ensinamentos onde Jesus reinterpreta a Lei de forma radical. Após estabelecer que veio para cumprir a Lei e que nossa justiça deve exceder a dos escribas e fariseus, Jesus agora demonstra como isso acontece na prática.

A fórmula "Ouvistes que foi dito... mas eu vos digo" torna-se um padrão distintivo no Sermão do Monte, revelando a autoridade única de Jesus para interpretar e aprofundar os mandamentos divinos. Ele não está contradizendo a Lei, mas revelando sua intenção mais profunda.

O sexto mandamento - "Não matarás" - era considerado um dos mais claros e objetivos dos Dez Mandamentos. A maioria das pessoas se sentia confortável assumindo que, por não ter cometido assassinato literal, estava em conformidade com este mandamento. Jesus está prestes a demolir essa complacência.

A importância deste ensinamento vai além de questões sobre violência física. Jesus está estabelecendo princípios sobre como conflitos internos não resolvidos podem escalar para consequências devastadoras. Ele aborda a raiz dos problemas relacionais antes que se manifestem em ações destrutivas.

Para o leitor contemporâneo, este versículo inicia uma jornada de autoexame que pode ser desconfortável mas essencial. Jesus nos convida a examinar não apenas nossas ações, mas nossas atitudes, emoções e motivações mais profundas.

2. Contexto Histórico e Cultural

Tradição Oral e Interpretação Rabínica

No judaísmo do primeiro século, a Lei escrita era complementada por extensa tradição oral que interpretava e aplicava os mandamentos a situações específicas. Os rabinos desenvolveram categorias detalhadas sobre diferentes tipos de homicídio, circunstâncias atenuantes, e procedimentos legais apropriados.

A frase "foi dito aos antigos" refere-se tanto à revelação original dada a Moisés quanto às interpretações subsequentes transmitidas através de gerações de mestres. Jesus está reconhecendo esta tradição interpretativa enquanto se prepara para oferecer perspectiva mais profunda.

Sistema Judicial e Consequências Legais

Na sociedade antiga israelita, homicídio era tratado como ofensa capital que requeria julgamento formal por tribunais locais ou pelo Sinédrio. O sistema incluía cidades de refúgio para casos de homicídio acidental e procedimentos específicos para determinar culpa e aplicar punições apropriadas.

A frase "será réu de juízo" refletia compreensão bem estabelecida de que certas ações têm consequências legais inevitáveis. Este entendimento criava estrutura social onde comunidade tinha responsabilidade de manter justiça e ordem.

Conceitos de Honra e Conflito Social

A cultura mediterrânea antiga era baseada em conceitos de honra e vergonha que frequentemente levavam a conflitos intensos. Insultos, desrespeito público, ou ataques à reputação familiar podiam escalar rapidamente para violência física, tornando o controle de impulsos agressivos questão prática urgente.

Jesus estava abordando realidades sociais concretas onde pequenos conflitos regularmente se tornavam situações perigosas. Seu ensinamento oferecia sabedoria preventiva para comunidades que viviam sob tensões constantes.

3. Análise Teológica do Versículo

"Ouvistes que foi dito aos antigos"

Esta frase indica que Jesus está abordando uma compreensão comum da Lei como foi ensinada pelos líderes religiosos. Os "antigos" refere-se aos antepassados de Israel que receberam a Lei através de Moisés. Isso prepara o terreno para Jesus contrastar interpretações tradicionais com seu ensinamento autoritativo. A frase sugere dependência da tradição oral, que era prevalente na cultura judaica, onde a Lei era transmitida e interpretada por escribas e fariseus.

"Não matarás"

Este mandamento é o sexto dos Dez Mandamentos encontrado em Êxodo 20:13 e Deuteronômio 5:17. É uma lei moral fundamental que proíbe tirar a vida humana de forma ilegal. O mandamento destaca a santidade da vida, princípio enraizado na crença de que humanos são feitos à imagem de Deus (Gênesis 1:27). A proibição contra o assassinato é padrão moral universal, refletindo a justiça e retidão de Deus.

"mas qualquer que matar será réu de juízo"

Esta parte do versículo reflete as consequências legais do assassinato sob a Lei Mosaica. No Israel antigo, assassinato era ofensa capital, e aqueles culpados estavam sujeitos ao julgamento pela comunidade ou tribunais locais (Números 35:30-31). O julgamento não era apenas questão legal, mas também mandato divino, pois Deus é o juiz final das ações humanas. Esta frase destaca a seriedade do crime e a necessidade de justiça, que é tema recorrente em toda a Escritura. Jesus usa isso para introduzir compreensão mais profunda de justiça que vai além da mera conformidade legal.

4. Pessoas, Lugares e Eventos

Jesus Cristo

O orador deste versículo, entregando o Sermão do Monte, um momento fundamental de ensinamento em seu ministério.

Os Antigos

Refere-se ao povo de Israel que recebeu a Lei através de Moisés, representando o contexto histórico dos mandamentos do Antigo Testamento.

O Sermão do Monte

Um evento significativo onde Jesus expõe sobre a Lei, enfatizando o espírito em vez de apenas a letra da Lei.

A Lei de Moisés

O contexto original do mandamento "Não matarás", encontrado nos Dez Mandamentos (Êxodo 20:13).

Juízo

A consequência mencionada para aqueles que cometem assassinato, indicando responsabilidade tanto terrena quanto divina.

5. Pontos de Ensino

O Coração da Lei

Jesus enfatiza que a Lei não é apenas sobre ações externas, mas a condição interna do coração. Verdadeira justiça excede mera adesão legalista.

Raiva e Ódio

Estas emoções são as sementes do assassinato. Os cristãos são chamados a abordar essas questões do coração antes que se manifestem em ações destrutivas.

Responsabilidade

Tanto o julgamento terreno quanto divino são reais. Os crentes devem viver com consciência de sua responsabilidade para com Deus e outros.

Transformação através de Cristo

Somente através de Cristo os crentes podem verdadeiramente cumprir a Lei, pois Ele transforma corações e mentes para se alinhar com a vontade de Deus.

Construção da Paz

Como seguidores de Cristo, somos chamados a ser construtores da paz, trabalhando ativamente para resolver conflitos e promover reconciliação.

6. Aspectos Filosóficos

Natureza da Moralidade Progressiva

Este versículo introduz conceito filosófico de moralidade progressiva, onde compreensão ética se desenvolve de aplicação literal para aplicação espiritual mais profunda. Jesus demonstra que mandamentos têm camadas de significado que se revelam através de maturidade espiritual crescente.

Esta perspectiva sugere que verdade moral não é estática, mas revela complexidade maior conforme nossa capacidade de compreensão se desenvolve. Isso não significa relativismo, mas reconhecimento de que realidades morais têm profundidade que pode não ser imediatamente aparente.

Relação entre Intenção e Ação

Jesus estabelece conexão filosófica crucial entre estados internos e comportamentos externos. Esta perspectiva antecipa desenvolvimentos modernos em psicologia moral que reconhecem como atitudes internas inevitavelmente influenciam ações.

A implicação é que responsabilidade moral se estende além de comportamento observável para incluir cultivo de atitudes e emoções que promovem ou impedem comportamento ético. Isso coloca peso significativo na formação de caráter e desenvolvimento espiritual.

Autoridade Interpretativa e Revelação Progressiva

A fórmula "ouvistes... mas eu vos digo" levanta questões filosóficas sobre autoridade para reinterpretar tradições estabelecidas. Jesus afirma autoridade que transcende convenção humana, sugerindo que compreensão verdadeira de princípios morais pode requerer perspectiva que vai além de sabedoria acumulada.

Esta abordagem implica que revelação divina pode iluminar aspectos de verdade moral que não eram previamente compreendidos, mesmo por comunidades religiosas dedicadas.

7. Aplicações Práticas

Para Resolução de Conflitos Pessoais

Este versículo estabelece princípio de abordar conflitos em seus estágios iniciais, antes que escalem para problemas maiores. Em relacionamentos pessoais, isso significa não permitir que irritações pequenas se acumulem até se tornarem ressentimentos profundos.

Aplicação prática inclui desenvolvimento de habilidades de comunicação que permitem discussão honesta de problemas enquanto ainda são manejáveis, busca de resolução rápida de mal-entendidos, e cultivo de atitudes de perdão que impedem acúmulo de amargura.

Na Vida Familiar e Relacionamentos

Para famílias, este ensinamento destaca importância de ensinar crianças a processar emoções difíceis de forma saudável. Pais podem modelar como lidar com frustração, desapontamento, e conflito sem permitir que essas emoções se tornem destrutivas.

Isso inclui ensinar habilidades de regulação emocional, criar ambientes onde sentimentos podem ser expressos com segurança, e estabelecer padrões que promovem respeito mútuo mesmo durante discordâncias.

No Ambiente Profissional

No trabalho, este princípio se aplica a como lidamos com colegas difíceis, supervisão injusta, ou situações profissionais frustrantes. Em vez de permitir que resentimento cresça, podemos buscar maneiras construtivas de abordar problemas.

Aplicação inclui comunicação profissional direta sobre problemas, busca de mediação quando necessário, e manutenção de atitudes que promovem colaboração mesmo em circunstâncias desafiadoras.

Em Comunidades e Sociedade

Este ensinamento tem implicações para como abordamos conflitos sociais e políticos. Em vez de permitir que diferenças de opinião se tornem animosidade pessoal, podemos buscar compreensão mútua e soluções que preservam dignidade humana.

Isso pode incluir engajamento respeitoso com pessoas que têm perspectivas diferentes, trabalho por justiça através de meios pacíficos, e recusa de participar em retórica que desumaniza outros.

8. Perguntas e Respostas Reflexivas sobre o Versículo

1. Como o ensinamento de Jesus em Mateus 5:21 desafia a compreensão tradicional do mandamento "Não matarás"?

Jesus expande o mandamento além da ação física para incluir as atitudes do coração que levam ao assassinato. Tradicionalmente, as pessoas se sentiam justas por não ter matado fisicamente alguém. Jesus mostra que raiva, ódio e desprezo pelos outros violam o espírito do mandamento, mesmo quando não resultam em violência física. Ele está nos chamando a examinar nossos corações, não apenas nossas ações, reconhecendo que pensamentos e atitudes assassinas são sérios diante de Deus, mesmo quando não se manifestam em comportamento externo.

2. De que maneiras a raiva e o ódio podem ser considerados equivalentes ao assassinato segundo o ensinamento de Jesus?

Jesus revela que assassinato começa no coração com raiva e ódio. Estas emoções contêm a semente da destruição - elas desumanizam outros, fazem-nos desejar mal para eles, e criam condições onde violência se torna possível. 1 João 3:15 confirma isso dizendo que "qualquer que odeia a seu irmão é homicida". A raiva prolongada mata relacionamentos, destrói paz, e pode eventualmente levar a ações destrutivas. Mesmo quando não matamos fisicamente, a raiva mata amor, compaixão e unidade em nossos relacionamentos.

3. Como o relato de Caim e Abel em Gênesis 4 ilustra as questões do coração que levam ao assassinato?

A história de Caim mostra a progressão fatal da raiva não resolvida. Começou com inveja do favor que Abel recebeu de Deus, progrediu para raiva quando Deus rejeitou sua oferta, e culminou em assassinato. Deus até advertiu Caim sobre o perigo: "o pecado jaz à porta" e ele deveria dominá-lo. Mas Caim permitiu que sentimentos negativos crescessem até se tornarem ação destrutiva. Isso ilustra como emoções aparentemente "pequenas" como inveja e ressentimento podem escalar para consequências devastadoras quando não são tratadas adequadamente.

4. Que passos práticos podemos tomar para abordar a raiva e impedir que ela se intensifique em pecados mais sérios?

Primeiro, reconhecer a raiva rapidamente e levá-la a Deus em oração. Segundo, identificar as causas subjacentes - frequentemente orgulho ferido, expectativas não atendidas, ou senso de injustiça. Terceiro, buscar resolução rápida através de comunicação honesta mas respeitosa. Quarto, praticar perdão conscientemente, lembrando como Deus nos perdoou. Quinto, cultivar gratidão e perspectiva eterna que relativiza problemas temporários. Sexto, buscar ajuda de outros crentes quando lutamos com padrões de raiva. Finalmente, substituir pensamentos negativos com meditação bíblica sobre amor e graça de Deus.

5. Como compreender nossa responsabilidade diante de Deus influencia nossas interações diárias e relacionamentos?

Reconhecer que Deus vê e julga não apenas nossas ações mas também nossos pensamentos e atitudes transforma como tratamos outros. Sabemos que teremos que prestar contas por palavras ásperas, atitudes de superioridade, e pensamentos vingativos. Isso nos motiva a buscar pureza de coração, não apenas correção de comportamento. Também nos lembra que outros são preciosos para Deus, merecendo nosso respeito e amor. Esta consciência nos encoraja a resolver conflitos rapidamente, pedir perdão quando necessário, e tratar cada pessoa como alguém criado à imagem de Deus.

9. Conexão com Outros Textos

Êxodo 20:13

"Não matarás."

O mandamento original "Não matarás", que Jesus referencia, destacando a continuidade e cumprimento da Lei.

1 João 3:15

"Qualquer que odeia a seu irmão é homicida. E vós sabeis que nenhum homicida tem a vida eterna permanecendo nele."

Expande o conceito de assassinato equiparando ódio ao assassinato, enfatizando a condição do coração.

Mateus 5:22

"Eu, porém, vos digo que qualquer que, sem motivo, se encolerizar contra seu irmão, será réu de juízo."

Jesus continua seu ensinamento abordando a raiva, mostrando que a raiz do assassinato começa no coração.

Gênesis 4:8-10

"E falou Caim com o seu irmão Abel; e sucedeu que, estando eles no campo, se levantou Caim contra o seu irmão Abel, e o matou. E disse o Senhor a Caim: Onde está Abel, teu irmão? E ele disse: Não sei; sou eu guardador do meu irmão? E disse Deus: Que fizeste? A voz do sangue do teu irmão clama a mim desde a terra."

O relato de Caim e Abel, ilustrando o primeiro assassinato e as questões do coração que levaram a ele.

Romanos 13:9

"Com efeito: Não adulterarás, não matarás, não furtarás, não darás falso testemunho, não cobiçarás; e se há algum outro mandamento, tudo nesta palavra se resume: Amarás ao teu próximo como a ti mesmo."

Paulo reitera o mandamento contra o assassinato, mostrando sua relevância contínua na ética cristã.

10. Original Grego e Análise

Versículo em Português: "Ouvistes que foi dito aos antigos: Não matarás; mas qualquer que matar será réu de juízo."

Texto Grego: Ἠκούσατε ὅτι ἐρρέθη τοῖς ἀρχαίοις· οὐ φονεύσεις· ὃς δ᾽ ἂν φονεύσῃ, ἔνοχος ἔσται τῇ κρίσει.

Transliteração: Ēkousate hoti errethē tois archaiois; ou phoneuseis; hos d' an phoneusē, enochos estai tē krisei.

Análise Palavra por Palavra:

Ἠκούσατε (Ēkousate) - "Ouvistes" - aoristo indicativo, segunda pessoa plural. Indica audição completa e compreensão do ensinamento tradicional.

ἐρρέθη (errethē) - "Foi dito" - aoristo passivo indicativo, terceira pessoa singular. Enfatiza autoridade da tradição transmitida.

τοῖς ἀρχαίοις (tois archaiois) - "Aos antigos" - refere-se aos antepassados que receberam a Lei original de Moisés.

οὐ φονεύσεις (ou phoneuseis) - "Não matarás" - futuro indicativo negativo. Proibição clara e definitiva contra assassinato.

φονεύω (phoneuō) - Verbo específico para assassinato intencional, diferenciando de morte acidental ou execução legal.

ἔνοχος (enochos) - "Réu" ou "sujeito a" - indica responsabilidade legal e culpa que demanda julgamento.

κρίσει (krisei) - "Juízo" - processo legal formal de julgamento e determinação de culpa.

A estrutura grega establece contraste claro entre ensino tradicional e autoridade interpretativa de Jesus que será desenvolvida no versículo seguinte.

11. Conclusão

Mateus 5:21 inicia uma das seções mais transformadoras do Sermão do Monte, onde Jesus demonstra como verdadeira justiça vai muito além de conformidade externa aos mandamentos. Este versículo estabelece o padrão para como devemos entender todos os mandamentos divinos - não apenas como regras externas, mas como princípios que governam nossos corações e motivações mais profundas.

A referência ao sexto mandamento serve como ponto de partida para exploração mais ampla sobre como conflitos internos não resolvidos podem escalar para consequências devastadoras. Jesus não está minimizando a seriedade do assassinato físico, mas revelando que problemas destrutivos começam muito antes de se manifestarem em ações visíveis.

Este ensinamento tem relevância profunda para relacionamentos contemporâneos, onde tendemos a focar em comportamentos observáveis enquanto negligenciamos atitudes e emoções que eventualmente determinam nossos comportamentos. Jesus nos convida a abordar problemas relacionais em suas raízes, não apenas em suas manifestações externas.

A fórmula "ouvistes... mas eu vos digo" que Jesus introduz aqui estabelece sua autoridade única para interpretar a Lei de forma que revela sua intenção mais profunda. Isso prepara o terreno para série de contrastes que demonstrarão como a justiça do Reino dos céus excede a dos escribas e fariseus.

Para aplicação prática, este versículo nos desafia a examinar nossos corações com honestidade, reconhecendo que somos todos capazes de atitudes e emoções que violam o espírito dos mandamentos de Deus. Simultaneamente, aponta para nossa necessidade de transformação divina que pode mudar não apenas nosso comportamento, mas nossos desejos e motivações fundamentais.

Finalmente, Mateus 5:21 estabelece fundamento para compreender que vida cristã autêntica requer atenção constante à condição de nossos corações, não apenas conformidade a padrões externos de moralidade religiosa.

A Bíblia Comentada